Ponho-me a olhar para o meu quarto, de fora para dentro, quase que com medo de entrar e sujar-me em algo. Após um dia a compactar tudo o que me fará falta nos próximos dias dentro da mochila que levarei para a minha próxima vida, o meu quarto assemelha-se àquele antigo colega de escola que jogava futebol na perfeição e tinha todas as miúdas, e que reencontramos, passados vários anos, a arrumar carros num parque de estacionamento onde nem os ratos se dignam a entrar. Peço-lhe "vá lá, arruma-te", mas a sua teimosia mostra-me que terei de ser eu a fazê-lo. Contorno-o e vou buscar uma Sagres. Fico novamente a fitá-lo. Peço ao António Variações que me recorde a sua canção de engate, e meto mãos à obra.

Recuperado o mendigo da sua miséria (pelo menos tanto quanto é possível disfarçar anos de maus tratos com um banho e um fato novo), tento pensar no que me espera amanhã. Deveria estar ansioso, assustado, com medo, curioso, espectante. Mas não. Estou tudo isto e, ao mesmo tempo, nada disto. Fale-me de Chicago, senhor Stevens, por favor. E traga-me mais uma Sagres. Apague a luz quando regressar da cozinha, abra a janela para deixar entrar o nevoeiro.

Saberá alguém o que é um turbilhão, um tornado, de nada? Uma amalgama caótica em eterno movimento descontrolado de coisas nenhumas? Como um estômago revoltoso pela ausência de conteúdo em si, dentro de si. Deveria ter algo neste momento, mas não. Amanhã parto para uma nova vida, e a única coisa que sei é que esta parece estar bem arrumada em si mesma. Toque lá novamente, senhor Stevens, que gosto de o ouvir cantar e tocar e sonhar e voar.

Parece que consegui convencer todas as minhas coisas a esperarem 6 meses por mim. E elas lá estão, com um ar energético e paciente, qual soldado prestes a embarcar para uma guerra, da qual espera voltar tarde mas seguramente vitorioso. Tal como todos os soldados, esta minha vida sabe que poderá ter de esperar mais de 6 meses. Sabe que poderei inclusive nunca mais voltar a ela. Mas continua na sua pose de inabalável soldado convicto na vitória dentro do prazo esperado.

Apago todas as luzes, deixo apenas a música a tocar. Entre o nevoeiro que deixei entrar e o que vejo lá fora, parece tudo imerso numa redoma de vidro, pequena e contida, para além da qual nunca ninguém foi ou sabe o que existe. Amanhã lá partirei esse vidro, e verei o que para lá há. E irei, deixando para trás só aquilo que me trouxe até aqui...

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