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A invisibilidade das palavras

Todos nós temos direito à invisibilidade. Ou deveríamos ter. Da mesma forma que somos capazes de falar, sorrir, caminhar ou abraçar, deveríamos ser capazes de desaparecer. Sem super poderes, artifícios de maior ou engenhos de 'ultimissima' geração. Apenas desaparecer, passar a ser invisíveis. E, para contornar tamanha falha da condição humana, temos de nos esforçar. Bastante.

Para conseguir ser invisível tenho que fazer com que o mundo gire para o outro lado. Há que contornar, manipular, dirigir, ameaçar, chantagear, ferir e matar. E mesmo assim, à última da hora, poderá sempre surgir alguém que se aproxime sorrateiramente por detrás de mim e, sem que dê por isso, me toque no ombro e me diga "cucu, estou aqui", expressando um ingénuo e genuíno sorriso que sou incapaz de, em toda a minha gloria sangrenta, imitar.

Ainda assim, por vezes, desaparecer torna-se possível. Consigo mergulhar na cidade e esconder-me no meio da multidão. Enterro a cabeça no meio dos ombros, olho de leve à minha volta, e solto um leve sorriso nos lábios à força de, por dentro, estar feliz e bem comigo próprio. E, durante os breves minutos em que alcanço esse feito sobrehumano, tudo está bem. Tenho esses momentos só de mim para mim, até a realidade me puxar de volta para ela e me forçar a encarar novamente tudo aquilo que deixei para trás.

Mas, mais do que eu, as palavras têm o direito a desaparecer quando querem. Pois elas, ao contrário de mim, são eternas. Viverão muitos mais anos do que eu. Um pouco à semelhança da memoria de alguém, que para sempre ficará nos corações de quem o viu morrer, as palavras são lançadas ao mundo para nunca mais o deixarem. E, no seu estatuto de imortais deusas da ideia, merecem um lugar digno da sua posição. E, se assim o desejarem, devem ser idolatradas em segredo, por um pequeno grupo de leais e discretos fieis, ao invés de se verem lançadas ao mundo para serem estripadas da sua essência por mil e um olhos vesgos, ramelosos, incolores.

Não me respeitem, empurrem-me para a ribalta e devorem-me a colheradas de gargalhadas e insultos. Deixem as palavras em paz. Elas viverão muito para além das gargalhadas, da vergonha, dos olhares, das tentativas e dos corpos.
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Madrid - Parte 23 de 192314

Estou deitado na minha cama, no meu quarto, na minha casa. Dizer isto é quase surreal. A minha casa. A minha vida. A nova.

Entre mil e um detalhes, tudo se parece alinhar. Continuo a não acreditar em coisas como o destino ou todos os seus pseudónimos, mas aparentemente tudo acontece por um motivo. Tudo gira no mesmo sentido, a orquestra toca e todos ouvem menos o maestro. E no meio de tudo isso dou por falta de algo que nunca tive. Ou que nunca soube ter. O que é, não sei. Ou melhor, não é nada. Mas faz-me falta. É algo que nunca quis ter, algo que alienei de tal forma que deixou de existir. Mas que existe. É como se a ausência de um sempre presente vazio se tornasse, de repente, a maior falha do planeta, e o engolisse de um só trago.

Parece que me deixei para trás. Em tempos fui eu, tinha tudo arrumado e tinha um espaço apertado para mim. Agora tudo o que resta é esta simplicidade, este conforto de existir e sobreviver nesta cidade que vive de me recebeu em troca de mim mesmo.
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Ponho-me a olhar para o meu quarto, de fora para dentro, quase que com medo de entrar e sujar-me em algo. Após um dia a compactar tudo o que me fará falta nos próximos dias dentro da mochila que levarei para a minha próxima vida, o meu quarto assemelha-se àquele antigo colega de escola que jogava futebol na perfeição e tinha todas as miúdas, e que reencontramos, passados vários anos, a arrumar carros num parque de estacionamento onde nem os ratos se dignam a entrar. Peço-lhe "vá lá, arruma-te", mas a sua teimosia mostra-me que terei de ser eu a fazê-lo. Contorno-o e vou buscar uma Sagres. Fico novamente a fitá-lo. Peço ao António Variações que me recorde a sua canção de engate, e meto mãos à obra.

Recuperado o mendigo da sua miséria (pelo menos tanto quanto é possível disfarçar anos de maus tratos com um banho e um fato novo), tento pensar no que me espera amanhã. Deveria estar ansioso, assustado, com medo, curioso, espectante. Mas não. Estou tudo isto e, ao mesmo tempo, nada disto. Fale-me de Chicago, senhor Stevens, por favor. E traga-me mais uma Sagres. Apague a luz quando regressar da cozinha, abra a janela para deixar entrar o nevoeiro.

Saberá alguém o que é um turbilhão, um tornado, de nada? Uma amalgama caótica em eterno movimento descontrolado de coisas nenhumas? Como um estômago revoltoso pela ausência de conteúdo em si, dentro de si. Deveria ter algo neste momento, mas não. Amanhã parto para uma nova vida, e a única coisa que sei é que esta parece estar bem arrumada em si mesma. Toque lá novamente, senhor Stevens, que gosto de o ouvir cantar e tocar e sonhar e voar.

Parece que consegui convencer todas as minhas coisas a esperarem 6 meses por mim. E elas lá estão, com um ar energético e paciente, qual soldado prestes a embarcar para uma guerra, da qual espera voltar tarde mas seguramente vitorioso. Tal como todos os soldados, esta minha vida sabe que poderá ter de esperar mais de 6 meses. Sabe que poderei inclusive nunca mais voltar a ela. Mas continua na sua pose de inabalável soldado convicto na vitória dentro do prazo esperado.

Apago todas as luzes, deixo apenas a música a tocar. Entre o nevoeiro que deixei entrar e o que vejo lá fora, parece tudo imerso numa redoma de vidro, pequena e contida, para além da qual nunca ninguém foi ou sabe o que existe. Amanhã lá partirei esse vidro, e verei o que para lá há. E irei, deixando para trás só aquilo que me trouxe até aqui...
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Tron: Legacy



Comprem a banda sonora e oiçam-na até à exaustão!!! Se tiverem tempo livre e dinheiro a mais, vão ver o filme.
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2010

Faça-se um brinde a 2010, que já terminou. E, da mesma forma que passei (ou, pelo menos, gostaria de ter passado) 2010, assim escrevo sobre ele: polvilhado com a inebriante sedução alcoólica.
Foi-me inicialmente difícil definir tudo aquilo que por mim passou neste período. Na verdade, não há mais que uma amalgama de ideias, artistas, conceitos, eventos e palavras perdidas na minha mente e na minha pessoa em relação a estes 365-iguais-a-tantos-outros dias decorridos e percorridos. Não tendo sido um período de revolução, apenas me distancio desse ano olhando mais além, e vendo quem era em 2009 e que sou 2011. Assim, 2010 define-se à custa da passagem entre 31/12/2009 e 01/01/2011, e não necessariamente por si mesmo. E isto quase que seria motivo para me deixar triste...
Não tivesse sido 2010, na sua essência, um caminho que me levou a Janeiro de 2011. Tal como em todas as viagens, a virtude está no caminho percorrido, e não no alcançar do destino (ou pelo menos assim nos dizem e nos fazem acreditar os filósofos de ideias baratas e descartáveis que por esse mundo fora existem e vingam). Neste período, longe de (me) ter inventando, reinventei(-me). Não para ninguém. De certa forma, 2010 foi um ano de egoísmo, de auto-mim-tudo-e-mais-alguma-coisa-egoista-que-possa-haver. Longe de ter sido feliz, aprendi a não ser infeliz por depender. Aprendi a "independer". Aprendi que espetar pequenas agulhas em nós próprios nos torna quase invencíveis perante as típicas e entediantes facadas que nos dão todos os dias, e que teimam em existir, apesar de querermos nada a ver com a sua essência. Aprendi que mau é bom, e que bom é bom, e que o que chateia é estar no meio, na incerteza, na indefinição. Sei agora que a virtude é um equilíbrio, qual ying e yang da sociedade ocidentalizadamente mentalizada em boas e más pessoas (e sei que não existem boas e más pessoas).
Sei mais, muito mais sobre mim mesmo, e muito pouco mais sobre algumas pessoas. Sei que as pessoas raramente são para mim, e que apenas eu alguma vez serei meu. E é com isso que devo contar.
Aprendi que ser esta espécie de ser tem as suas falhas, e aprendi a compensar isso com sorrisos falsos e piedosos. E sinceros. Aprendi o que há realmente na essência, e o quão irrelevante isso é.
Apreendi concertos, filmes, séries, notícias, técnicas e tecnologias, antisocialidades e sociedades construidas com base nisso. Aprendi a arriscar, a sonhar, a deixar-me afogar em ambições e ânsias desmedidas, nas quais mergulhei para me manter à tona de momentos mais profundos e negros.
Aprendi a sonhar, e com o sonho de sonhar estou em 2011.
 
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