As minhas coisas

(E agora uma sessão de apresentação das porcarias expelidas pela minha mente após um dia de trabalho, tese e pouco mais...)

Levaram as minhas coisas. Acordei e não estavam lá. Não posso afirmar que as tenham roubado. Nem quem as levou. Ou sequer se alguém as levou. Poderão muito bem, apenas, ter-se fartado da sua fatigante e monótona rotina de serem as minhas coisas, e ter partido em busca de algo diferente, em busca de um sonho, de um destino, ou de uma simples ponte de onde saltar para porem fim à sua existência. Não sei onde estão, apenas sei que não no seu eterno sítio de estar.

Dei pela sua falta momentos depois de acordar. Naquela altura em que a fronteira entre os sonhos e a realidade parece não existir, e tudo se mistura num só cenário, tão perfeitamente lógico e credível, que nem nos damos conta de que não o é. À medida que a ficção é rasgada lenta mas eficazmente dos meus olhos, apercebo-me de que algo está diferente. E aí me dou conta de que as minhas coisas não estão lá.

No seu lugar encontro outros objectos, aparentando serem capazes de cumprir, com a mais perfeita exactidão, as funções dos seus antecessores. Talvez até melhor, dada a sua pose imperativa, militar, sóbria e cinzenta. Observo-os quase que a medo, pois a sua presença, longe de ser ameaçadora ou sobressalente, intriga-me mais do que fascina. Todos estão no seu sítio e pareceriam, a qualquer leigo, ali ter estado desde sempre. Parecem ter sido feitos para ali estar, dando ares de que, em qualquer outro local do mundo, seriam vistos como claros refugiados de uma qualquer guerra de guerrilha sem princípio, meio ou fim.

E, da sua aparente altitude de topo de móvel ou prateleira, eles fitam-me com o seu sério e mordomado olhar. Quase parecendo discretamente revoltados por estes momentos de inutilidade, aguardam pacientemente as minhas ordens, na esperança de que lhes dê uso, para que possam ganhar vida e fazerem a única coisa que sabem fazer: aquilo a que foram destinados.

Verifico-os, um a um, e certifico-me de que fazem o que lhes é pedido como deve ser. E eles acedem, sem dificuldades, ao que lhes peço. Agem fria e mecanicamente, com a precisão e fatalidade de um bisturi. Os livros relatam-me histórias completas e elaboradas, os cds fazem tocar as notas com uma claridade invejável, as gavetas abrem-se com suavidade para mostrarem camisolas imaculadamente arrumadas e estimadas. Tudo é perfeito, dentro da imperfeição possível da impessoalidade.

Mas estas não são as minhas coisas. São as coisas de alguém, um alguém genérico, impessoal, quase inumano. E, sem as minhas coisas, este não sou eu. Ou, pelo menos, sou um "eu" a quem faltam as suas coisas, a quem faltam partes. Um "eu" a quem levaram gostos, defeitos, vícios, segredos, manias, recordações. Quem levou as minhas coisas (se é que alguém as levou), levou consigo um pouco de mim, e prendeu-me a esta estranha e inédita fase da vida: "busco as minhas coisas".

Tiro qualquer coisa de uma gaveta para vestir, sem me dar ao trabalho de muito escolher. Assenta-me que nem uma luva, mas deixa-me uma sensação estranha no corpo. Algo apenas descritível como o exacto oposto de estrear a nossa peça de roupa favorita. Agarro numa ou outra coisa que sei que me farão falta, e saio. Sinto que não sou eu quem vai por aquela rua fora, mas um sósia, uma cópia com defeito de impressão na qual apenas se vislumbra uma mancha do que se pretendia que fosse. E parto, decidido a recuperar as minhas coisas. Decidido a encontrá-las, e com isso repor o meu normal estado de ser.

2 comentários:

Abobrinha disse...

... um móvel desses que tem as coisas impecáveis e organizadas dentro é que me dava jeito...

Vio disse...

há dias em que parece que os nossos sapatos não nos servem. Vá-se lá perceber.

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